O hino da Espanha não tem letra. Pode soar estranho, parecer que falta algo, mas não tem. Ao lado de Bósnia-Herzegovina, Kosovo e San Marino, é um dos quatro hinos nacionais do mundo que contém apenas a melodia. Por isso, se você se deparar com alguma versão cantada na Marcha Real (ou Marcha Granadera), esqueça. Além de errado, é potencialmente delicado. Como viu a organização do Campeonato Ibero-americano de atletismo, realizado neste mês em Trujillo, Peru.
O espanhol Javier Cienfuegos foi o campeão na prova de arremesso de martelo. Quando ele foi ao pódio, aconteceu isso:
Oficialmente, a Marcha Real nunca teve letra, mas algumas versões foram criadas ao longo do tempo. Uma das mais conhecidas, e que chegou a ser usada como se fosse oficial, é a ouvida no vídeo acima, composta por José María Pemán. Ela foi aprovada pelo general Francisco Franco e teve uso corrente durante sua ditadura.
Após o retorno da democracia, essa letra foi vista como símbolo de sua ideologia e foi derrubada. Houve até tentativas de criar novas versões, como uma do Comitê Olímpico Espanhol em 2007. No entanto, nunca houve consenso sobre as propostas apresentadas e a melhor forma de cantar a marcha continua sendo no “la la la la, lalalalalalalalala la la la, lala lala lala”.
Duas palavras, apenas duas palavras, e demorou quase três décadas para mudá-las. Nesta quarta (dia 31), o senado canadense aprovou uma alteração na letra em inglês de “Oh, Canadá”, o hino oficial do país desde 1980, quando substituiu o “God Save de Queen” do Reino Unido. O objetivo é tornar a música neutra em relação a gênero.
A mudança é realmente pequena. As três primeiras estrofes do hino são “O Canada! / Our home and native land! / True patriot love in all thy sons command” (“Oh, Canadá! / Nossa casa e terra nativa! / O verdadeiro amor patriótico em todos seus filhos comanda”). A questão é justamente o “thy sons” (“seus filhos”), uma referência restrita a homens.
Em português, “filhos” pode se referir a filhos homens ou a filhos homens e filhas mulheres misturados. Em inglês, “sons” serve só para homens. Se fossem filhos e filhas, seria “sons and daughters” ou “children”.
Por isso, surgiu a ideia de trocar “thy sons” por “of us”, deixando a estrofe “O verdadeiro amor patriótico em todos nós comanda”. Isso foi colocado em discussão pela primeira vez em junho de 1990, quando a Câmara de Toronto recomendou a troca ao governo canadense, assim como a mudança de “Our home and native land” (Nossa casa e terra nativa) por “Our home and cherished land” (Nossa casa e terra amada) para incluir também os estrangeiros que moram no Canadá e os canadenses que nasceram em outros países.
O assunto voltou ao debate em 2002 e em 2010, mas uma pesquisa mostrou que a maior parte da população era contra a mudança e o assunto esfriou. Até que, em 2016, um senador apresentou um projeto de lei defendendo a alteração. O texto passou por todas as instâncias até a última quarta, quando passou pelo Senado.
Hino canadense antes da alteração
Isso não significa que o hino já tenha oficialmente mudado. Ainda é necessária a aprovação da governadora-geral Julie Payette, uma espécie de representante da coroa britânica para o Canadá. Trata-se de uma formalidade, pois seu cargo é mais cerimonial do que executivo, mas ela precisa assinar a lei e estabelecer um dia para que ela entre em vigor.
Por fim, um detalhe importante. A discussão toda se refere apenas ao hino oficial em inglês. A letra em francês – que, diga-se, foi composta dez anos antes da versão inglesa – tem conteúdo bastante diferente, não cria conflito de gênero e, por isso, segue inalterada. As primeiras estrofes, por exemplo, são “Ô Canada! / Terre de nos aïeux, / Ton front est ceint de fleurons glorieux!” (“Ó, Canadá! / Terra dos nossos ancestrais, / Vossa testa está adornada com os louros mais gloriosos!”).
Hinos de países parecem girar sempre em torno dos mesmos temas. Engrandecer a nação, falar da história do povo, mencionar alguma guerra de independência, dizer que seus filhos lutarão pela pátria, qualquer coisa assim. Sempre com um ritmo pomposo, entre o quase militar e o totalmente militar.
Dou essa cornetada porque adoro hinos. Os favoritos da casa são os de França, Portugal e Afeganistão. O do Brasil é legal também, apesar da letra parnasiana incompreensível para uma pessoa normal, como o da Itália e o da Alemanha. E, bem, se você acha que todos eles são iguais, o usuário SwiftOryx do Reddit mostra que não é bem assim.
Ele fez um mapa sensacional, separando os países por temas de seus hinos nacionais. Os que falam da nação são a maioria, seguido pelos que falam de alguma batalha e os que exaltam algum personagem. Motes de menos destaque são a bandeira (Albânia, Estados Unidos, Somália, Suíça e Turquia), idioma (Moldávia) e amizade (Eslovênia). Ah, e ainda sobram Espanha e Bósnia-Herzegovina, únicos países cujos hinos não têm letra.
Confira abaixo. Para ver uma versão maior, clique aqui.
Era para ser apenas mais um jogo da Fed Cup, a competição feminina entre nações do tênis. A alemã Andrea Petkovic ia enfrentar a norte-americana Alison Riske na abertura da série, realizada em Lahaina, no Havaí. No momento dos hinos, o solista e professor universitário Will Kimble foi ao centro da quadra e começou a cantar: “Deutschland, Deutschland über alles, Über alles in der Welt”.
Mas o caso alemão é pior. Não é apenas uma troca de uma música por outra, por mais inconveniente que isso seja, mas trazer à tona uma letra que virou um símbolo do nazismo – e até hoje é cantada por grupos extremistas no país.
O hino alemão foi composto por Joseph Haydn em 1797 para o aniversário do Imperador Francisco II, último líder do Sacro Império Romano-Germânico. Na década de 1840, o império estava ruindo, mas o movimento de unificação das nações germânicas ganhava força. August Hoffmann compôs uma nova letra, enfatizando justamente essa ideia de que uma união era mais importante do que qualquer coisa. A música começava com o “Deutschland, Deutschland über alles, Über alles in der Welt”, ou “Alemanha, Alemanha acima de tudo, Acima de tudo no mundo”.
A versão de Hoffmann, Deutschlandlied, era composta por três estrofes. Com a unificação alemã, ela foi ganhando força aos poucos e passou a ser adotada em algumas cerimônias oficiais. Em 1922, foi confirmada como o hino alemão.
Na década seguinte, Adolf Hitler chegou ao poder com um discurso fortemente nacionalista. Eventos oficiais eram constantes, sempre marcados pelo hino alemão – tocado só em seu primeiro trecho (o “Deutschland über alles”) – seguido pelo hino do Partido Nacional-Socialista (“Horts-Wessel-Lied”, uma música hoje proibida na Alemanha). De repente, o “Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo” ganhou um novo significado, muito mais sinistro do que o de uma nação que queria se formar a partir de pequenos estados.
Com o final da Segunda Guerra Mundial e a queda do nazismo, a Alemanha foi dividida. O lado oriental, comandado pela União Soviética, criou um novo hino, mas o ocidental, sob administração anglo-franco-americana, ficou um período sem uma canção nacional. Em 1952, foi aceita a proposta de usar a Deutschlandlied, mas mantendo apenas a melodia e o terceira parte, quase desconhecido na época. Ele começa com “Einigkeit und Recht und Freiheit” (“Unidade e Justiça e liberdade”), palavras que se tornaram um lema não-oficial do país.
Formalmente, os versos iniciais do hino não haviam sido banidos, mas eram rejeitados pela relação com o nazismo. Em 1991, quando a Alemanha se reunificou, foi confirmado que apenas a terceira parte fazia parte do hino do país. As duas primeiros foram retirados.
Não é difícil encontrar na internet a versão antiga do hino alemão, com o trecho vinculado ao nazismo. Em vários casos, aparece como “o hino completo”, mas é um erro de informação. O hino completo, desde 1991, é formado apenas pelo trecho que se inicia com “Einigkeit und Recht und Freiheit”. As demais partes não são reconhecidas e sofrem rejeição pela maioria dos alemães pelo que representam. Até porque são constantemente entoadas em manifestações neonazistas no país.
Por isso, quando o antigo hino começou a ser cantado antes do jogo da Fed Cup, a delegação e torcedores da Alemanha começaram a cantar quase gritando a versão correta, tentando abafar o cantor. Não era apenas corrigir um erro, mas responder a uma ofensa.
Um hino com história parecida com a Deutschlandlied é a Marcha Real. O hino da Espanha nunca teve letra oficial, mas várias versões foram propostas ao longo dos séculos. Uma delas recebeu a aprovação do General Francisco Franco e foi adotada em várias cerimônias durante sua ditadura. Com sua morte, o hino espanhol voltou a não ter letra (um dos únicos do mundo nessa condição, ao lado de San Marino) e recuperar os versos antigos é quase que uma manifestação de aprovação ao antigo regime. E, claro, também houve uma gafe com ele em um evento esportivo. No caso, durante a premiação de Caroline Marín no Mundial de Badminton na Indonésia, em 2015.